"Onde é que eu li aquilo de um condenado à morte que no momento de morrer dizia ou pensava que se o deixassem viver num alto, numa rocha e num espaço tão reduzido que mal tivesse onde pousar os pés - e se à volta não houvesse mais que o abismo, o mar, trevas eternas, eterna solidão e tempestade perene -, e tivesse de ficar assim, em todo esse espaço de um archin, a sua vida toda, mil anos, a eternidade...preferiria viver assim do que morrer imediatamente? O que interessa é viver, viver, viver! Viver, seja como for, mas viver! O homem é covarde!"
Pois então, decidi começar o texto com este trecho de Crime e Castigo, de Dostoiévski; e também com a seguinte premissa: todos nós recebemos educações distintas. Portanto, criamos uma visão diferente do mundo e das coisas que acontecem ao nosso redor, e além. Tendo em vista estas duas introduções, conto-lhes uma situação que aconteceu comigo no dia de hoje...
Como o dia estava propício para, resolvi dar uma passeada pelo bairro com minha cachorra e sua fugaz vontade de andar pelas ruas a fim de gastar toda sua energia. Pois bem, andamos até um pouco adiante da esquina e com os pingos de chuva a cair pelo céu acinzentado, demos meia volta e viemos embora. No meio do caminho, porém, encontro uma colega que há tempos não via, e mais por educação do que por sentimentos aliados à saudades, decido ficar para batermos um papo.
Assuntos sobre família vão, outros sobre shows, reveillons e praias vem...E então, seu irmão, que apareceu depois de um tempo, começa a comentar sobre as pessoas mal vestidas, com seus objetos de trabalho - quinquilharias, daquelas que vendem de porta em porta para conseguir dinheiro no fim do mês, do modo mais honesto possível -, a descer e subir pela rua a qual estamos. Deixe-me, então, ambientalizá-los: enquanto o assunto introduzido pelos mesmos eram carros luxuosos, viagens, baladas e afins, um senhor negro, de barba por fazer, cabelos emaranhados e maltrapilho, aparece à nossa frente do modo mais gentil possível, apesar de carregar em sua face certo receio, e nos pergunta: "vocês, por acaso, não teriam comida pra me dar?" Antes que fossem grossos com ele, o que, por algum motivo, eu imaginei que fosse acontecer, respondi: "poxa, eu não moro aqui, e eles estão em casa sozinhos, não têm comida feita." Logo, ele se foi.
Bom se tivesse ficado por aí, e eu tivesse levado para casa apenas o maldito arrependimento de não ter andado alguns metros até minha casa e pegado qualquer bolacha que fosse, qualquer coisa que desse pra comer naquela hora. Mas, não, eu evitei a grosseria para com o pobre senhor, mas não os comentários que vieram logo após sua ida. "Eles pensam que é tudo fácil! Que as coisas são conseguidas assim, com uma perguntinha, apenas". Mas...o quê?! Desde quando aquilo foi fácil? Desde quando a vida dele é fácil? Não foi preciso trocar algumas palavras com ele para concluir que de fácil, sua vida não tem nada. Mas, tudo bem, vamos trabalhar com a hipótese de que ele consiga se alimentar facilmente dessa forma, que ninguém o rejeita e que não passa pela mente de ninguém que ele seja um mero trombadinha dando uma desculpa para rouba-lo assim que der mole. Tenho a certeza de que ter passado por seu orgulho, tendo em vista todo o seu trajeto de vida e, sem sombra de dúvidas, suas revoltas para com a sociedade mesquinha-egoísta-hipócrita-etc (e, mais uma vez, sou certa disso sem ter trocado ao menos uma palavra com o sujeito) não fora nada fácil. A fome nos deixa irracionais, e decerto este é o motivo pelo qual ele se sujeita, sabe-se lá quantas vezes por dia, à essa atitude tão humilhante, e ainda assim, com seu jeito todo educado e até fazendo brincadeiras.
Não quero comentar as coisas racistas que ouvi, as comparações ridículas com animais, dentre outras ignorâncias. Não me pronunciei, fiquei calada. Talvez eu pudesse fazer todo um discurso de cunho político, moralista, histórico etc, mas sei que isso não mudaria um pensamento que, como bem sei, já é de família. Ademais, dificilmente discuto e ponho na mesa minhas opiniões.
Voltei, então, com três arrependimentos. O último eu carrego sempre, que é o de não me pronunciar ao ver tais situações. E assim vamos, convivendo com pessoas de tais pensamentos, que passam o tempo a falar de futilidades materialistas, e na primeira necessidade...Bem, vocês já sabem.
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